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  • Bruna Rios e Isabella França

A resistência além dos palcos

“Foi um desemprego da noite pro dia em 3,2,1”, relata Eduardo Leão que viu suas três peças serem canceladas devido à pandemia do novo coronavírus


Imagem: Isabella França


Por Bruna Rios e Isabella França


Temporariamente as cortinas se fecharam, as luzes se apagaram e o público deixou de ouvir os três sinais que anunciam o início de uma peça. O palco ficou inabitado e a plateia em silêncio absoluto. A falta de ruído assombra. A saudade dos aplausos ao final das apresentações é dolorosa. Os momentos e o contato físico transformaram-se em lembranças. E assim aconteceu com outros setores. Não só o teatro se viu sem rumo, mas os cinemas, os eventos e o comércio também sentiram na pele os efeitos da pandemia do COVID-19.

Aquilo presenciado em outros países chegaria de fato ao Brasil e de forma arrebatadora. O vírus foi descoberto em dezembro na cidade de Wuhan (China), sem pedir licença e devastando seres das mais diversas formas, seja com a própria doença ou com o impacto dela na sociedade e na economia.

E assim a COVID-19 foi dominando as nações. Ninguém sabia de fato o tamanho de sua força, muito menos que em tão pouco tempo o Brasil se tornaria, por alguns meses, o segundo país com o maior número de casos no mundo. Mas aos poucos, o brasileiro foi estabelecendo um novo modo de viver, ou melhor, de conviver com a doença.

Com essa paralisação, inúmeras áreas de trabalho temeram o pior e quem vive de arte no Brasil não deixou de compartilhar desse sentimento. Na verdade, nem sempre foi fácil para quem escolheu o meio artístico como fonte de renda. O palco sempre foi resistência. Desde o seu início na Grécia Antiga, por volta de VI a.C, passando por diversas mudanças e dificuldades, a arte de fazer teatro foi se revolucionando, mas nunca deixando de existir. “O teatro nunca morreu e vive em constantes reinvenções”, lembra Eduardo Leão, 47, ator que se viu enfrentando uma das piores fases para o seu meio.

A falta de incentivo e desvalorização à arte, não é uma decorrência apenas da pandemia da COVID-19. O período no qual a sociedade está vivendo serviu para agravar a situação que já existia muito antes do novo coronavírus chegar ao país. É o que pensa Giordano de Castro, 34, fundador da companhia de teatro Magiluth, grupo recifense fundado em 2004. “A gente começou a perceber que desde o golpe, governo Temer, as coisas já não eram tão boas, mas no governo Bolsonaro ficou explícito”, acrescenta.

A ideia de uma reforma ministerial no Planalto contendo a incorporação da pasta da Cultura à da Educação já vinha de outras gestões. Porém, a concretização só ocorreu durante o governo do atual presidente Jair Bolsonaro, que, ao extinguir o Ministério da Cultura, o transformou em Secretaria Especial da Cultura, sendo incorporada ao Ministério da Cidadania (e não mais da Educação como idealizado anteriormente). Logo depois, a Secretaria Especial da Cultura foi transferida para o Ministério do Turismo. “A gente está na mão de um governo tão incompetente, que ele sempre quis desarticular qualquer cadeia produtiva artística”, comenta Giordano.

Essas mudanças contribuem para a construção de um desinteresse e de uma desvalorização a todos os ramos da cultura, sejam eles a dança, o teatro, a música, as artes plásticas ou o audiovisual. Um estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas em parceria com a Secretaria de Cultura e Economia Criativa e o Sebrae aponta que um dos setores mais prejudicados pela pandemia é o cultural.

Com a pandemia, a falta de incentivo se tornou ainda mais gritante e as produções teatrais não se enquadram em uma exceção. Muitas companhias independentes, que sofrem com a falta de patrocínio, se viram fadadas ao fim. Muitos teatros vivem apenas do valor arrecadado com a bilheteria e sem nenhum outro suporte financeiro. É o exemplo do Teatro Oficina, grupo que sofreu despejo da sua casa de produções no Bixiga, bairro no centro da cidade de São Paulo, que abrigava o acervo, os arquivos e figurinos das peças.

Porém, o problema é bem mais profundo do que se imagina. O ator Eduardo Leão afirma: “É muito difícil ir para frente por conta própria. Essas pessoas que participam de grupo de teatro têm profissões paralelas, dão aula, fazem mil outras coisas para poder, fora do horário comercial, tocar os grupos de teatro.” E além disso, essa questão se agrava ainda mais a partir do momento em que para se ter acesso ao benefício federal, o artista precisa ter um cadastro junto a algum órgão cultural. E de acordo com o IBGE, 44% das pessoas que trabalham com cultura atuam de forma autônoma e sem renda fixa.

A situação descrita acima ocorreu com os membros do Magiluth: o grupo sentiu na pele a angústia de não poder dar continuidade aos trabalhos planejados para este ano, além de não ter conseguido o auxílio-emergencial para nenhum de seus membros. “Nós integrantes do Magiluth não podemos receber nem a Aldir Blanc e nem o Auxílio”, relata um dos fundadores do grupo. Segundo Giordano, eles se mantém há nove anos com salário, 13º e plano de saúde, mas isso não exclui que individualmente cada um possa fazer outras coisas. “Hoje, nós somos seis pessoas e a gente vive do Magiluth e quer viver do Magiluth”, comenta.

Para o grupo o começo da quarentena foi uma loucura. Os integrantes se viram em uma avalanche. As coisas foram se desmoronando aos poucos. Giordano conta que no começo da quarentena todos os festivais que eles tinham para participar tiveram que ser cancelados. Foi nesse momento, enquanto inúmeros cancelamentos estavam acontecendo, que a ficha deles começou a cair. “Converso muito com a minha companheira e a gente fica falando que aquele começo tínhamos certeza que íamos morrer e era muito tenso. Eu passei um tempo meio no luto”, relata o ator.

Este ano, o grupo Magiluth almejava grandes voos. Eles haviam acabado de estrear em Recife o casarão Magiluth, um espaço com teatro, bar e sala de ensaio. “Foi um investimento grande do grupo, porque vivemos de bilheteria e de circular”, comenta Castro. A companhia de teatro estava com um espetáculo que tinha estreia prevista para maio de 2020, o estudo número 1: Morte e Vida, baseado na obra de João Cabral de Melo Neto, “Morte e Vida Severina”. Foram grandes investimentos e perspectivas para esse ano, mas como relatou Giordano, o grupo saiu “de um ano que foi super promissor para um ano de falência”. Eles investiram todo o dinheiro que tinham de caixa no espaço sabendo que depois teriam um retorno, mas de repente tudo teve que parar, gerando um grande prejuízo para o grupo.

Saindo de Recife e viajando direto para a capital paulista, o cenário não é diferente. O ator Eduardo Leão, formado em artes cênicas pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, passou por uma situação muito semelhante à do grupo de teatro Magiluth. A trágica história do começo da pandemia deu início com o desandar da carruagem em março, quando realmente as cidades brasileiras começaram a aderir à quarentena. O ator conta que ele tinha três espetáculos para estrear em março, mas todos tiveram que ser interrompidos sem nenhuma previsão de volta e do que estava para acontecer dali para frente. “Foi um desemprego da noite pro dia em 3,2,1”, relata.

Eduardo sentiu na pele essa paralisação em duas situações diferentes: a de ser diretor e coprodutor de uma peça e a de estar como ator. Dos três espetáculos, dois deles que estavam na sua agenda ele estaria nos palcos. Um deles é uma reestreia da peça “As cangaceiras Guerreiras do Sertão”, que teve sua primeira temporada no Sesi e agora a segunda está prevista para ser no Tuca (Teatro da Universidade Católica de São Paulo). Para esse trabalho, Eduardo conta que eles já têm o dinheiro captado, e que estão apenas esperando o tão sonhado momento da reabertura, marcado agora para março de 2021. Além desse, Leão também também estaria como ator no musical infantil Aladdin, no teatro Procópio Ferreira, mas, como a produção anterior, também teve que ser paralisado e até o momento não possui previsão de volta.

Do outro lado da moeda, atrás das cortinas, como diretor e coprodutor, Eduardo estava com uma peça programada para ter uma temporada em um teatro da prefeitura da cidade de São Paulo e que também já possuía uma verba de apoio além da bilheteria. Mas a quarentena chegou exatamente uma semana antes da estreia, interrompendo mais um de seus trabalhos. Então, falando especificamente de teatro, literalmente da noite para o dia deixou de existir”, acrescentou Eduardo.

Ainda pelos entornos da capital paulista, a chegada do novo coronavírus ao Brasil afetou também a companhia de teatro Pessoal do Faroeste. Com sede na Rua do Triunfo, endereço inserido na região da Cracolândia e conhecido como parte da Boca do Lixo (local de antigo polo cinematográfico), o grupo paulistano, que atua há mais de 22 anos e possui produções e trabalhos de cunho político-social, foi um dos últimos da cidade a fechar suas portas e cortinas ao público em março deste ano. E de lá pra cá, as coisas não melhoraram.

Paulo Faria, 55, diretor e fundador da Pessoal do Faroeste, decidiu isolar-se socialmente dentro do espaço do teatro no início da pandemia. Essa mudança possibilitou com que iniciasse a #FomeZeroLuz, campanha de arrecadação e distribuição de cestas básicas e mantimentos àqueles em situação de vulnerabilidade pela região.

Embora estivesse fazendo o bem, nem tudo conspirava a seu favor. No início do mês de agosto, o grupo teatral recebeu sua segunda ação de despejo devido ao acúmulo de dívidas de aluguel (a primeira, no ano de 2019, foi cancelada devido ao apoio da população ao movimento #FicaFaroeste, pelo qual conseguiram recursos pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro. Até o momento da produção dessa reportagem, a ação de despejo está correndo perante à justiça), além de uma outra ação para que Paulo deixasse o apartamento onde morava em Santa Ifigênia. Com isso, sua mudança para os palcos tornou-se literal e definitiva, sem qualquer previsão do que poderia vir a acontecer.


Imagem: Isabella França


Giordano, Eduardo e Paulo são exemplos de toda uma classe que foi atingida de forma drástica pela pandemia que mudou todos os rumos e todas as expectativas para esse ano de 2020. Cada um, junto aos seus respectivos grupos de teatro, teve que se adaptar, se reinventar e pensar em um jeito de lidar com o “novo normal”. Em Recife, o grupo de teatro Magiluth se reinventou e levou um pouco da magia dos palcos para as telas dos celulares. O grupo criou dois trabalhos: Tudo que coube numa VHS e Todas as Histórias Possíveis. O primeiro é um projeto realizado por meio de plataformas e que cria uma interação do público com as mídias sociais e o ator que está atrás da tela. Giordano comenta que a escolha por esse formato levou em consideração a segurança em não travar (por possíveis problemas de conexão com a internet) e perder a essência da experiência. Essa primeira temporada comprada pelo SESC chegou à marca de 1605 apresentações. A partir dessa peça, o próprio SESC deu a ideia de criar um segundo trabalho. E assim surgiu “Todas as Histórias Possíveis”, contendo o mesmo formato do primeiro e seguindo a mesma proposta de experiência, porém com uma história diferente. Para Giordano, essa experiência “derrubou barreiras geográficas. É um trabalho que eu estou fazendo aqui de Recife, mas eu fiz com gente no Acre, gente em POA e gente na Alemanha”. Além disso, eles conseguiram atingir pessoas que não costumavam frequentar o teatro antes da pandemia e que, neste novo cenário, conseguiram ter essa experiência mesmo distante dos palcos. O grupo enxergou essa adaptação como um meio de valorizar a arte e que “de alguma forma isso serviu como um trabalho de acordar”, comenta Castro.

Na capital paulista, Eduardo Leão teve seus espetáculos adiados. Um deles, uma temporada no teatro da prefeitura de São Paulo, teve que ser adaptado para o digital, pois o dinheiro do apoio tinha que ser usado e depois, quando voltassem aos palcos, fariam uma nova temporada para receber o dinheiro da bilheteria. Esse projeto, produzido por cinco pessoas, é uma versão do conto de fadas da Chapeuzinho Vermelho, sem falas e com uma trilha de 35 minutos de André Abujamra. De acordo com o ator, é “como se fosse um grande clipe de música instrumental”. A peça foi adaptada para se passar dentro da casa de um dos atores, onde o cenário da casa da mãe de Chapeuzinho se passou na cozinha, o caminho e a floresta foram colocados na sala e a casa da vovó em um outro pedaço da sala onde ficava o sofá. E assim através de uma câmera que seguia os atores pela casa, eles transmitiam em uma live via instagram.

Paulo, por outro lado, não seguiu o mesmo caminho de Giordano e Eduardo. Como a companhia Pessoal do Faroeste está passando por dificuldades econômicas durante esse período da pandemia, eles não se reinventaram da mesma forma feita pelo grupo Magiluth e o ator Eduardo Leão, mas em contrapartida voltaram seus esforços para aqueles que passam dificuldades 365 dias por ano e precisam de um olhar mais atencioso à sua situação, uma vez que o teatro é muito mais do que apenas atuar, ele também tem um olhar para as causas. Além disso, em relação à reabertura dos teatros, Paulo não concorda com a volta das peças neste momento. “Não é que a gente não quer voltar. A gente até pode, mas é vulnerabilizar demais onde a gente já está vulnerabilizado”, comenta o diretor relembrando que a companhia está inserida em uma região onde existem muitos outros riscos”, ele ainda acrescenta dizendo que apesar desse choque que a arte levou ao precisar suspender suas atividades, “o teatro, como sempre, ele sai mais potente, eu acho, dessas experiências”.

Apesar de todas as dificuldades que permeiam a trajetória do teatro, a sua resistência diante de qualquer adversidade se sobressai e sustenta essa arte que causa não apenas divertimento, mas também reflexão diante do mundo e momento em que vivemos. A arte do teatro se molda ao momento em que ela está sendo exercida e vai muito além dos palcos. Ela está em pequenos detalhes da vida humana. Em cada canto existe arte e formas de se fazê-la. Logo, quem vive do teatro absorve essa força e resistência e perpetua a magia e a essência da dramaturgia por onde passa. O teatro nunca terá um fim. Como disse o diretor Paulo Faria, “o teatro é uma expressão humana desde que o homem é homem, desde que a mulher é mulher, desde que o cachorro é cachorro. Isso é um fenômeno básico do Teatro, essa comunicação.” A história do teatro no mundo nunca morreu.

Imagem: Isabella França

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