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  • Maria Julia Farias

A verdadeira face da cozinha profissional

Atualizado: 8 de jan. de 2021

Realidade de uma profissão nem um pouco glamourosa pelos olhos de Renata, Lisandra e Dahoui

 

“Lugar de mulher é na cozinha”. Cozinha profissional? Do lar? Ambos? Ou nenhum? Esta frase, apesar de curta, é de grande potência e repercussão entre as mulheres que escolhem seguir a área profissional da gastronomia devido a esta “divisão” da própria frase.


Vivendo em uma sociedade patriarcal e monopolizada pelos homens, as mulheres enfrentam dificuldades em encontrar espaço dentro do mercado de trabalho; principalmente entre os chefs de cozinha. Ao contrário do que muitos pensam e possam perceber, a cozinha é um lugar fechado e machista, razão que dificulta a entrada da mulher neste meio.


É a partir de muita resistência e caráter forte que a mulher consegue sobreviver dentro da cozinha.


Na tentativa de denunciar uma cozinha nem um pouco glamourosa, Renata de Paula, de 25 anos, idealizadora do perfil do Instagram @machismonacozinha - de quase 3 mil seguidores, criou a página em virtude de expor a realidade dentro de uma cozinha. Por meio de relatos de outras chefs, o Instagram registra os abusos e assédios entre as profissionais da gastronomia no mundo, principalmente no Brasil e Portugal.


“Difícil encontrar uma mulher que já trabalhou em restaurante e que nunca sofreu assédio. O assédio sexual e moral, esse machismo dentro da cozinha, é algo muito comum, e as vezes é mascarado como se fosse uma cultura enraizada de como trabalha um restaurante. E como cliente, você não sabe o que acontece por trás daquela porta onde sai os pratos."

Renata aponta que todas as mulheres que trabalham no ramo tinham algo a dizer sobre o assunto, cada uma com sua história, da mais surreal às mais corriqueiras, mas, ao mesmo tempo, todas carregavam uma culpa, vergonha e medo por ser mulher. Ao identificar essa coletividade entre outras experiências, e suas próprias, a idealizadora da página se sentia incapaz de fazer alguma mudança.


Foi a partir de uma viagem à Nova Iorque, ao acompanhar o Eater - uma plataforma que visita e conhece restaurantes de NYC -, que Renata enxergou uma esperança. Na cidade americana, ela se deparou com matérias de jornais e revistas que abordaram os assédios dentro de algumas cozinhas e questionaram a moral dos chefs na recomendação de restaurantes.


Dessa maneira, expor o que mulheres, LGBTQI+ e todos os que já passaram por situações de desconforto dentro de uma cozinha e restaurante, assim evidenciando a realidade que se passa por trás das portas que saem as comidas, é a ideia do @machismonacozinha. Trazer situações reais de pessoas reais para o conhecimento das pessoas.


Quando Renata entrou na cozinha profissional de um restaurante, em 2015, percebeu o ambiente masculino e por isso sentia a necessidade de se encaixar, e então provar sua capacidade de estar no local; e se mostrar feminista apenas a afastaria da equipe.


Foi então que passou a baixar a cabeça para ouvir histórias de objetificação das mulheres, rir de piadas que a deixavam desconfortável e inventar opiniões sobre tais assuntos. Em meio a este comportamento, Renata pensou que faria parte da equipe de cozinha, até que um dia aconteceu com ela. Renata foi assediada, e percebeu que ser “igual” a eles não a levaria a nada. Ela continuaria sendo mulher e isso nunca mudaria. Esse ciclo se repercutiria entre ela e outras mulheres.


“[...] a cultura dentro de uma cozinha é diferente de uma empresa comum, [...]. Então cobrir o acontecimento e dizer que é “homem sendo homem”, ou “é apenas brincadeira, não leve tão a sério”, é a maneira mais fácil de eles “resolverem” o assunto”.

Então, de acordo com Renata, o modo que a mulher encontra para ter seu lugar na cozinha é, muitas vezes, por meio da perda de sua feminilidade. Engrossar a voz, falar firmemente e forçar autoridade são meios que as mulheres recorrem para serem respeitadas. Mas, ao recorrer a isto, acabam reproduzindo o machismo com outras mulheres.


Lisandra Amaral, de 36 anos, chef e dona do restaurante Maria Farinha Cozinha, diz justamente que as mulheres usam da imagem de mandona para que, finalmente, sejam respeitadas no ambiente de trabalho.


Porém, ao mesmo tempo em que a mulher exige por respeito dentro da cozinha, existe a linha tênue em que ela acaba saindo como “histérica” ou “doida” quando determina uma ordem. “Eu não sou histérica, eu sou assertiva. Você vai fazer isso para mim do jeito que eu quero. Você tem só que entender que eu estou te pedindo pra fazer dessa maneira e eu não quero ser contestada neste caso”, responde Lisandra para essas frases.

Lisandra Amaral, desde que entrou no curso de gastronomia no SENAC, o CCI (Cozinheiro Chefe Internacional) - um curso para quem já tem formação superior -, notou a diferença entre mulheres e homens no curso. De 50 alunos, dez eram mulheres. Dessas dez mulheres, três eram donas de casa que fizeram o curso por hobby; sete estavam de fato procurando por uma carreira. No fim do curso, eram apenas cinco se formando.


Fora a diferença entre os números entre mulheres e homens no curso, a forma como elas são tratadas no ambiente de trabalho é muito diferentes. Apesar das experiências de trabalho de Lisandra não girarem em torno de assédios, giram em torno de incapacidades.


No momento de receber alimentos em um dos restaurantes que Lisandra trabalhou, ela não podia recebê-los por ser julgada incapaz de carregá-los quando a mesma estava apta para a função. “Não tenho problema com isso, quem tem problema com isso é você. E se eu tiver que carregar, eu vou carregar igual a você. [...] Se eu tiver que levantar, limpar, lavar e esfregar, eu vou fazer igual a você”, responde Lisandra.


Assim que decidiu ser sua própria chefe depois de

quatro anos de formada, Lisandra começou a planejar seu restaurante. O Maria Farinha tinha como conceito trabalhar apenas com mulheres em todos os processos, desde a reforma ao funcionamento. Porém, na época de inauguração, Lisandra enfrentou dificuldade em encontrar trabalhadoras na área de engenharia civil, sendo essa a única etapa que não as envolveu.


Como a chef é do interior de São Paulo, próximo ao Vale do Paraíba, uma região rural da cidade, ela foi inspirada pela área que é bem marcada por matriarcas, mulheres de família preparando tudo da casa. E, pesquisando, descobriu uma fecularia de família bem antiga que é comandada por sete mulheres e dois homens.


“[...] é muito interessante você estar naquele ambiente em que tinha mulher plantando, colhendo, carregando no lombo, enquanto os homens faziam a parte comercial da coisa. Que é isso, o patriarcado permite que o homem tenha postos de poder de negociação e tudo mais, e quem faz todo o rolê são as mulheres”.

Foi por meio dessa consciência que Lisandra desejou levar o conceito para o restaurante. Assim, o nome, Maria Farinha Cozinha, provém do ato de uma mulher cozinhar (como em: mulher – verbo – cozinhar [estar e produzir]).



Então, em relação as mulheres ocupando o espaço de cozinha, Lisandra acredita que é um lugar que as mulheres merecem e que elas não podem estar fadadas a cozinhar apenas de forma doméstica. Ela diz que as mulheres que cozinham são aquelas “tias da merenda”; é a mulher que está de avental florido e faz uma boa massinha e uma boa carninha, e completa dizendo que não se enxerga a mulher dentro da cozinha no mesmo nível profissional de um homem.

"Temos que brigar sim, e mais do que isso, acho que temos que aceitar que esse é um dos nossos lugares, e respeitar essa ancestralidade, respeitar essas mulheres que conseguiram seus lugares a partir desses postos mais baixos de trabalho”.

Assim, quando se percebe o discurso de “lugar de mulher é na cozinha”, na verdade é na cozinha de casa, alimentando a família, cuidando da casa, do marido e das crianças. Não no mesmo ambiente de trabalho de um homem, disputando uma vaga de emprego e um lugar na grande mídia.


Danielle Dahoui, 52 anos, chef e dona do bistrô Ruella, aponta que desde que seja uma escolha da mulher, e não imposto por outra pessoa, a mulher possui o direito de ser cozinheira caseira e dona de casa, assim como as profissionais da área têm o direito de estar na cozinha. Ambas merecem respeito. Mas, não são todos que enxergam desta maneira.

"Eu mesma tinha um certo preconceito contra a mulher do lar. Até eu ficar em casa oito meses cuidando da minha filha, eu achava que era um trabalho menor, achava que elas estavam se escondendo atrás dos maridos, achava que elas não tinham grandes sonhos, que elas eram acomodadas. Você vê como o machismo está impregnado nas nossas vidas”.


Dahoui lutou pelo seu respeito, reconhecimento e lugar numa cozinha profissional, assim como outras chefs de cozinha. Hoje é uma chef reconhecida na mídia, é apresentadora do Hell’s Kitchen Brasil, jurada do BBQ Brasil e do Bake Off Brasil. Sua história começa quando decide ir para França estudar gastronomia, em 1990, devido a uma carência de conhecimento sobre preparos de comida e culinária em seus pequenos negócios. Como desejava independência nos preparos de suas receitas, decidiu ir para outro país.


O mercado gastronômico na capital francesa era reinado por homens e, quando conseguiu seu emprego, Dahoui começou lavando louça no restaurante. Assim que foi contratada, a chef era a única mulher no recinto. Sem formação, sem saber falar francês e sendo brasileira, sofria muito preconceito dentro do local. Ao compartilhar o mesmo espaço de trabalho com os homens, Dahoui era encochada, colocavam pimenta na comida dela, esquentavam a panela para ela queimar a mão, entre outros. Na época pensava que era apenas brincadeira e sacanagem dos franceses; mas já era machismo, diz ela.


Dahoui tinha que mostrar força; tinha que falar grosso; tinha que se impor; tinha “socar” eles quando fosse socada. A chef, então, percebe que para ser respeitada no ambiente gastronômico, teve de apagar um pouco a sua feminilidade.


Hoje, há 28 anos no mercado, conta que ser chef de cozinha é ser líder, saber gerir pessoas e equipe. Ter um ambiente de trabalho saudável. Dahoui conta que na geração dela tinha que se provar o tempo inteiro para caminhar para frente na área.


Com esse pensamento, Dahoui já sabia que os chefs e os restaurantes em que trabalhou na França não sabiam criar um ambiente saudável para os seus funcionários. O ambiente era de recriação de críticas e repreensões.


[...] O chef quando chega, a gente morre de medo, porque você pode estar fazendo tudo certo, mas o cara vai achar um motivo para te esculhambar porque foi esculhambado e, ao invés de fazer uma coisa diferente, ele quer seguir. [...] Era sempre uma briga muito grande, e isso me motivou a ser dona de restaurante. ‘Eu não quero trabalhar para o povo desse jeito. Eu quero montar meu restaurante porque eu quero provar para eles que a gente pode sim trabalhar de uma forma feliz. E eu consegui”.

Com isso em mente, Dahoui montou seu restaurante, o Ruella, desejando motivar sua equipe, ensiná-la, e, acima de tudo, dar oportunidade de emprego para as pessoas, indo, assim, contra o ambiente de trabalho desgastante. A chef diz: "dar e ter conhecimento e saber gerir pessoas, isso é ser chef de cozinha", e é exatamente isso que Dahoui procurou exercer em seu empreendimento.


Ao longo dos 24 anos de restaurante, Dahoui já contou com colaboradores diversificados, como ex-presidiários, ex-viviciados, analfabetos, comunidade LGBTQI+, negros, amarelos, entre outros, sempre considerando a aura da pessoa e seu comprometimento. A imagem do exterior não importava e isso não seria o definidor da capacidade de seu futuro funcionário.


Ela chegou a contratar uma travesti, mas a equipe do restaurante se recusava a trabalhar com ela. "Então vai todo mundo embora. Pode pedir as contas e assinar, porque eu vou para a cozinha com ela", respondeu Dahoui à equipe. Neste momento, o sócio de Danielle argumentou que a travesti deveria ficar de costas para os clientes, caso não, ela seria mandada embora, mas Dahoui nunca o ouviu. E assim, a travesti acabou se tornando a chef de cozinha do Ruella.


A quebra dos padrões de preconceito dentro da cozinha surgiu naturalmente para a chef Dahoui. Sem se preocupar com números de contratação entre as minoras - que são na verdade, as maiorias, de acordo com ela -, o Ruella surgiu da ideia de ter um ambiente saudável entre seus colaboradores, independentemente, de sua raça, cor e gênero. É dessa maneira que a chef procura trabalhar.



Porém Danielle Dahoui explica, que a cozinha continua não sendo nem um pouco glamourosa - indo contra a onda de romantização da cozinha profissional -, pois o trabalho é muito árduo, pesado e cansativo. As brigas e xingamentos são constantes; a mulher sendo diminuída e não tendo seu espaço também. “As pessoas continuam acreditando nesse mundo colorido que as pessoas postam no Instagram que está longe de ser real”, finaliza Dahoui sobre o assunto.

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