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  • Giulia Alecrim e Laura Quadros

Do leito de cuidado para o leito de paciente: profissionais da saúde estão adoecendo


Imagem: Reuters



Por Giulia Alecrim e Laura Quadros



O desgaste físico e emocional é imenso; as mãos tremem; a ansiedade corre pelas veias, o sono só vem depois da medicação; o choro é incontrolável e as lágrimas caem antes mesmo de ser possível reconhecer o líquido quente que escorre pela bochecha. O medo ultrapassa a força de fazer com que os pés e a cabeça queiram sair de casa. O que vai ser da saúde deles? Da saúde de suas famílias? Dos seus próprios pacientes?


Os profissionais da saúde batalham contra essas questões há algum tempo. A ansiedade, o ataque de pânico, o desgaste, a exaustão e o Burnout são alguns sentimentos e sintomas que os acompanham desde o alerta emitido pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março: o coronavírus tornou-se uma pandemia. Completamente desamparados desde o início do surgimento da doença os trabalhadores enfrentaram leitos de enfermaria e Unidades de Terapia intensiva lotados, ao mesmo tempo em que respiradores mecânicos e equipamentos de proteção individual estavam em falta no país. Uma doença misteriosa, invisível e mortal passou a vitimar pacientes, colegas e familiares.


Um levantamento feito até o mês de agosto pelo Ministério da Saúde divulgou que ao menos 250 mil infecções e 200 mortes decorrentes da Covid-19 representavam profissionais da saúde – destes, técnicos ou auxiliares de enfermagem são os mais atingidos. Esses trabalhadores, indispensáveis para a saúde, são considerados como grupos de risco por atuarem na linha de frente da pandemia e serem mais vulneráveis a contaminação. Mas os grandes heróis no combate ao coronavírus estão expostos a situações e propensos a doenças que vão além dos sintomas do vírus: as doenças mentais. Entre a linha tênue de atendimentos e contaminações - e as consequentes mortes - há o trabalho desses trabalhadores que colocam suas próprias vidas e saúde mental em risco em prol do bem populacional.


O Brasil já observava, há pelo menos dois anos, sinais de uma epidemia mental entre a população geral. Sintomas como ansiedade, medo, depressão e síndrome do pânico representam a realidade do país mais depressivo e ansioso da América Latina, sendo 5% e 9% das pessoas manifestando esses sentimentos. Os dados são de um relatório da Organização Mundial da Saúde, publicado em 2018, num mundo pré-pandemia da Covid-19. Atualmente, no meio de infecções desenfreadas, esses dados apenas aumentam.


Mas o desgaste físico desses profissionais ainda não está perto de terminar. A rotina exaustiva de médicos e enfermeiros não só levou a mais de 70% desses trabalhadores à síndrome de Burnout; mas também 79,3% estão mais apreensivos, pessimistas, deprimidos, insatisfeitos ou revoltados com o atual momento. O adoecimento ou atendimento de um paciente é acolhido e tratado em qualquer estabelecimento médico; mas e quando eles, profissionais da saúde, também precisam de ajuda por tamanho esgotamento mental?

O medo da contaminação passou a ser parte da rotina diária. Mas por trás de tamanha apreensão, sentimentos de vergonha e preconceito ainda persistem quando o assunto é procurar ajuda.


Os sintomas de esgotamento e tristeza vêm de diferentes formas e afeta cada profissional de uma maneira diferente. Mesmo sem ter contato direto com pacientes contaminados, a agente de saúde da Unidade Básica de Saúde do Carmo, Kamilla da Silva, 37, passou a sentir sintomas de ansiedade no final de março, que evoluíram para uma síndrome do pânico. Por causa disso, precisou ficar cinco meses afastada do trabalho. “Eu ia até lá (UBS) e não conseguia trabalhar, então eles me mandavam de volta para casa. Eu não conseguia entrar na unidade, com medo (...) nem voltando pra casa eu me sentia melhor, mais calma. Não conseguia dirigir. Só melhorou quando eu comecei a medicação”.


Kamilla conta que procurou a rede de apoio de um hospital para pedir ajuda profissional. Familiarizada com os sintomas de ansiedade e síndrome do pânico, ela sabia que precisava de ajuda. “Sentia sudorese, taquicardia, falta de ar. É muito complicado”.


Durante o tempo que ficou afastada, iniciou o tratamento profissional e precisou entrar com uma medicação, que preferiu não mencionar, para as síndromes. Ela diz ter começado a se sentir melhor há três meses, quando trocou o remédio. “O acompanhamento psicológico é fundamental (...) As pessoas não entendem que psiquiatra não é só pra gente doida (sic). Se as pessoas soubessem como é bom fazer terapia... A gente fica mais leve”. Anteriormente, Kamilla tomava fluoxetina, um antidepressivo comum para tratamento de ansiedade. “Eu falava pra mim, eu tenho que voltar, eu preciso voltar. Foi a minha força de vontade também. Se você não tiver força de vontade, fica estagnado. Precisa dar o primeiro passo. Eu não queria ficar um ou dois anos assim. Eu queria voltar a trabalhar. Voltei com medo, mas voltei”, ela conta.


Quinze dias depois de retornar ao trabalho, ela testou positivo. Com o diagnóstico, tirou os dois filhos pequenos e o marido de casa para ficar os 14 dias de isolamento. Com sintomas leves, se recuperou rápido. “Pensei que era rinite. Tive sintomas de alergia. Tosse seca, garganta coçando. Fiz o teste por desencargo de consciência”.


Há 2.700 quilômetros de distância de Kamilla, o cenário se repete para a enfermeira Mariluce Ribeiro. Há 20 anos, a paraibana se dedica a área de terapia intensiva pediátrica, mas o medo de uma possível reinfecção, o cansaço, a pressão e a insatisfação com o descaso sofrido pelos enfermeiros fizeram com que, depois de meses de pandemia, ela solicitasse uma transferência de área para uma UTI de neonatal.


Mariluce tem 50 anos e trabalha em dois hospitais públicos de João Pessoa. Mãe e avó, ela já não passa mais os finais de semana com os netos. Precisou ser afastada por ansiedade do trabalho em junho e, dois dias depois, testou positivo para a doença e ficou 60 dias em casa. Durante esse período, infectou a filha e o noivo – a primeira com o pulmão comprometido, e o segundo com um quadro leve, assim como ela mesma.


“No início, foi muito difícil. Não estávamos preparados. Não tínhamos EPIs adequados. Não tínhamos máscaras. Os materiais eram compartilhados (...) A equipe nunca recebeu treinamento para tratar pacientes com Covid. Até abri denúncia no Ministério Público e no Conselho Federal de Enfermagem (...) Muitas vezes ficávamos, 30 pessoas, aglomeradas numa mesma sala de descanso. Nisso, eu nem dormia lá. Ficava acordada na UTI. Isso acabou comigo”. Mas mesmo em casa, Mariluce não dormia. Precisou iniciar tratamento psicológico e começar a tomar medicação para sono e ansiedade, donarem e citanopram, respectivamente.


“Eu procurei ajuda por que eu chorava por tudo. Eu nunca me senti tão angustiada e com tanto medo (em 20 anos de profissão). Tive crise de ansiedade. Adoeci psicologicamente. É um sentimento de medo e angústia de contaminar quem a gente ama. A angústia, a tristeza, a falta de respeito (com os enfermeiros) me adoeceram”.


Mariluce testemunhou a doença e a morte de seus colegas de trabalho e relata que, se não tivesse iniciado o tratamento, estaria ‘louca’. “É um assunto difícil. Eu ainda travo em dizer que procurei um psiquiatra, pois ainda há um tabu em achar que quem procura psiquiatra é louco. A gente sente muito esse estigma. Eu mesma tenho esse preconceito, as vezes digo que procurei um médico, que faço terapia, mas não que me consulto com um psiquiatra”.


Enquanto para a grande maioria dos profissionais da saúde buscar ajuda ainda é visto como um tabu, para outros é a luz no fim do túnel, como também é o caso de Francisca Ester Lopes, que tem 56 anos e dedicou 32 destes à área da saúde. Ester, técnica de enfermagem no Hospital das Clínicas na cidade de São Paulo, já é aposentada, mas continua trabalhando, atualmente na UTI de Trauma do Hospital. Ela conta que já havia realizado terapia em grupo há alguns anos e que havia sido muito benéfico para ela, mas com o início da pandemia resolveu retomar as sessões “eu comecei em março, mas a pandemia contribuiu para que eu ficasse mais ansiosa.’’


Ester, que sofre de asma e bronquite, conta que suas comorbidades contribuíam para a ansiedade e medo do vírus. Ela conta que chegou a pedir a sua chefe para ser trocada de setor, mas que não deu certo. “No começo eu fui chorando trabalhar (...) Eu chorava nos primeiros dias porque eu ficava pensando no caos que era isso, não tinha uma solução (...) Você não tinha um respaldo psicológico para enfrentar isso, todos nós estávamos sujeitos a pegar, não era porque você estava toda paramentada que não ia pegar, era uma coisa assustadora, é uma neurose”. Felizmente, Ester não foi contaminada, mas a grande maioria de seus colegas, sim.


Para Ester, o problema está longe de acabar e a segunda onda já uma realidade. Quando questionada sobre a continuação do acompanhamento psicológico, ela afirma que pretende continuar “Eu ainda não fui dispensada, ainda vou continuar”.


O acompanhamento psicológico é a única maneira profissional que estes trabalhadores da linha de frente têm de tentar administrar as tamanhas perdas que vivenciaram ao seu redor. “Às vezes você pode conseguir criar certas barreiras mas chega uma hora que ninguém é de ferro...por isso que é importante você conseguir criar momentos para você, seja uma terapia, seja fazer exercício, poder descansar, poder ver a família...” afirma o psicólogo e psicanalista , Lucas Contador.


Lucas conta que, aproximadamente um mês e meio depois do início do isolamento em São Paulo, observou uma procura maior de pacientes, algumas delas motivadas pela pandemia. Quando questionado sobre a importância de o profissional de saúde buscar ajuda psicológica em momentos como esse, ele não hesita. “Esses profissionais estão o tempo inteiro ali, tendo que cuidar de pessoas, tendo que estar bem para cuidar das pessoas, estar bem é estar bem fisicamente e mentalmente.”


Para “estar bem”, o psicólogo afirma que é necessário ter alguns cuidados básicos, como por exemplo uma boa alimentação, horas de sono e um tempo para descanso. Infelizmente, esses cuidados básicos estão longe de ser a realidade da grande maioria dos profissionais que atuam na linha de frente contra a covid-19, além disso, a responsabilidade e o sentimento de que vidas, mais que nunca, dependem de você, pairam sobre as cabeças desses profissionais. “O tempo inteiro você tem uma luta para tentar fazer o melhor possível para ajudar aquele paciente, salvar uma vida (...) Você vê muita coisa em um hospital, tudo isso vai te afetando (...) É uma situação muito complicada”. Lucas também afirma que, o quanto antes esses profissionais conseguirem ter acesso à rede de suporte de cuidados, melhor será o modo de passar por esse período inédito e tão difícil que todos se encontram.


O esgotamento mental e abalo psíquico dos profissionais de saúde em meio a pandemia do novo coronavírus é um assunto recorrente a ser trabalhado, mas, infelizmente, ainda negligenciado por muitas pessoas, inclusive pelos próprios colegas de profissão. As doenças mentais, muitas vezes silenciosas, assolam diariamente pessoas que doam grande parte da sua vida em prol de desconhecidos.


Enquanto alguns profissionais falam abertamente que já foram diagnosticados com distúrbios mentais, que procuraram ajuda e que fazem uso de medicamentos, outros ainda se negam a procurar ajuda por medo de julgamentos, preconceitos e em alguns casos até mesmo risco de demissão ou à restrição de atividades. Em um país em que já se perderam quase 170.000 vidas por conta da Covid-19, no Brasil, profissionais da saúde estão adoecendo de maneira silenciosa e cada vez mais rápido, enquanto buscam garantir a sua efetividade e segurança enquanto realizam o seu trabalho, sem oferecer mais risco ao paciente.



Em momentos como esse, o que eles sentem?


Kamilla: “Todo mundo da área da saúde chegou a pensar em mudar de trabalho (...) Mas eu pensava nos meus cadastrados (pacientes idosos da UBS). Eles me ligavam, me mandavam mensagem. São idosos, em maioria abandonados pela própria família.”


Ester: “Eu comecei a me sentir importante, foi impressionante isso. Poxa vida, eu trabalhei nessa profissão uma vida toda e eu sei que a profissão de enfermagem é uma profissão que é super desvalorizada, eu me senti importante.”



O que os profissionais da saúde aprenderam com a pandemia?


Kamilla: A gente aprende a ouvir mais, a ajudar mais. A pandemia veio pra ensinar muita coisa pra gente. Aprendemos mais a nos colocar no lugar do outro.


Ester: Eu aprendi que a vida é cheia de surpresas, nunca iriamos imaginar uma coisa dessas.



Profissionais da saúde: onde buscar ajuda?

Instituto Sedes Sapentiae: Realiza sessões gratuitas e especiais online para profissionais linha de frente contra o coronavírus

Telefone: (11) 3866-2730

Site: sedes.org.br


Acolhida: Os interessados devem acessar o site, está disponível a relação dos profissionais e suas agendas. É possível selecionar o profissional e agendar virtualmente.


Atenção e Acolhimento Psicossocial: O atendimento é oferecido das Das 10h às 20h. Os interessados devem entrar em contato via telefone manifestando interesse.

Telefones :

11-999442436 11-99974-1064


Apoiar Saúde: Os interessados devem enviar e-mail manifestando interesse e as supervisoras do programa entrarão em contato.

E-mail: apoiar@usp.br


Mobilização Paradigma: Os profissionais da saúde devem entrar em contato via Whatsapp de segunda à sexta das 9hs às 22h.

Whatsapp: (11) 954354613

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