top of page
  • Ana Paula Lino e Julia Carmona

Marcas de sobrevivência

As histórias de quem sofreu queimaduras graves e seus caminhos para seguir em frente



Aos 4 anos de idade, Jenifer Pereira Garcia sofreu um acidente que teve início com uma brincadeira inocente. Naquele dia, o gás tinha acabado e a mãe dela foi cozinhar em outra casa, em um sítio próximo, enquanto ela, uma criança sozinha pela primeira vez, decidiu brincar com fogo.

Jenifer riscou o fósforo, motivada por impulso que hoje não consegue entender. As chamas brilharam mas, pouco tempo depois, a brincadeira virou pesadelo. A mágica acabou quando o fogo encostou em sua roupa.

O vestido simples da menina entrou em combustão e grudou em sua pele. O tecido, nylon, é tido como uma opção resistente às chamas porém, quando queima, o material derrete, gruda no corpo e pode agravar o tipo de queimadura.

A criança foi para o hospital, sua mãe ia junto na ambulância, com queimaduras em ambas as mãos, causadas na tentativa de ajudar a filha. Jenifer estava com o lado direito do corpo queimado, do pescoço até abaixo da cintura, na frente e nas costas. Queimaduras graves, de terceiro grau, foi o que os médicos disseram. Na escala de gravidade, esse tipo é o que causa mais danos, queimando todas as camadas da pele, nervos e glândulas e podendo atingir músculos e até os ossos.

Queimaduras desse tipo deixam cicatrizes, tanto físicas quanto mentais.

A menina teve que ir para Curitiba, capital do estado onde mora, para realizar uma série de cirurgias, sessões de fisioterapia e fonoaudiologia, pois havia perdido a fala e os movimentos.

O acidente de Jenifer demonstra uma estatística brasileira. Segundo a Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ), 40% dos acidentes com itens inflamáveis acontecem com crianças de até 10 anos e são a 4º maior causa de mortes e hospitalizações daquelas com até 14 anos.

Hoje, aos 26 anos, estando recuperada e apenas com as cicatrizes como lembrança do que aconteceu, Jenifer sorri, o único lembrete constante da queimadura são as cicatrizes com as quais ela já se acostumou e as aceita como parte dela, mas muitas outras pessoas não as enxergam da mesma forma .

“É uma coisa que nunca vai sair de mim, então eu comecei a lidar com isso”, explica. “Eu ficava com muito medo, mas eu superei”. Ela já sofreu preconceito por suas marcas, na escola e na hora de procurar emprego, o que desencadeou a depressão mas, ao conseguir um trabalho, sua relação consigo mesma melhorou. “Eu me acostumei a lidar com os olhares e com as pessoas falando.”

Jenifer ainda percebe as pessoas na rua, olhando-a com espanto e surpresa, mas a reação das mesmas a faz rir. A alegria dela ao lidar com esses acontecimentos está intimamente ligada não apenas ao seu acidente, mas ao de seu primo, que faleceu aos 7 anos, em decorrência de uma grave queimadura.

“Eu tenho que aproveitar da melhor forma possível, porque eu estou aqui, estou viva!”. A lição que Jenifer nos deixa é a importância de se apegar à vida, de dar importância para aquilo que temos.

“As pessoas que se queimaram, de algum tipo, tem que lembrar que é uma segunda chance de vida que Deus deu para a gente [...] A gente tem um propósito de levar alegria nessa vida e tem gente que se espelha muito em mim. Dizem que eu deveria ser triste, mas eu não sou.”

De fato, Jenifer transmite alegria! Mostra suas cicatrizes, usa as roupas que quer, vai aonde deseja e deixa claro que o acidente aconteceu, que a mudou, mas ela apenas agradece por poder ter chegado à essa conclusão, viva e com marcas do que viveu.


“As minhas cicatrizes são marcas de vitória”


A gravidez é uma benção para muitas pessoas. Mas o que acontece quando complicações a levam a pensar que você não é suficiente para aquela vida que foi gerada? Esse é um pensamento provocado pela depressão pós-parto, que acontece com cerca de dois milhões de mulheres brasileiras.

Foi essa doença que fez com que Heitor, com alguns meses de vida, visse as chamas brilhando na noite de 20 de agosto de 2015, em sua casa.

O fogo teve início com a tentativa de suicídio de Morganna Cavalcanti, agora com 27 anos.

Morganna sofreu e ainda sofre dessa doença tão silenciosa, mas tão presente na sociedade atual. “Eu não entendia o que era aquilo, porque se eu entendesse o que era aquilo, se eu tivesse informação maior, eu teria procurado ajuda”

A jovem tinha acabado de entrar na faculdade, quando viu sua vida dar um giro completo ao descobrir que teria um filho. A moradora de Morrinhos, município de Goiás, conta que não percebeu os sintomas da depressão pós-parto logo de início e seus familiares e amigos não entenderam o que estava acontecendo com ela. “Só minha avó percebeu porque ela é meu espelho”, diz Morganna.

As sensações de abandono e desamparo se uniram às crises de depressão, pânico e ansiedade, tudo misturado com um relacionamento pouco saudável com seu então marido e a impressão de que não seria uma boa mãe.

No olho desse furacão, a decisão de Morganna foi de tirar a própria vida. O ex-marido estava dormindo na sala, para não ser acordado pelo bebê durante a noite, Heitor já tinha pego no sono no quarto, com a mãe. Sozinha com seus pensamentos, Morganna pegou o frasco de álcool 70%, que era usado para cuidar da criança e teve seu propósito alterado naquela noite.

“Foi tudo sem pensar, eu poderia ter afetado até ele!”, conta ela ao falar do perigo das chamas atingirem o bebê que dormia ao seu lado quando tudo aconteceu.

Seu parceiro na época foi quem a encontrou, apagou o fogo, chamou os vizinhos e os familiares que moravam perto. Enquanto era socorrida, a dor física da jovem foi suplantada por outra, muito mais forte: a de ver seu filho sendo levado para longe por sua tia.

O único pensamento que passava na cabeça de Morganna era de que não tinha despedido-se de Heitor.

Esse “até logo” que não foi dito, ficou em sua cabeça até a entrada no Hospital Regional de Morrinhos, ali ela decidiu que faria de tudo para sobreviver e criar seu filho.

No hospital, medicada com morfina e após todas as providências serem tomadas, ela foi informada que precisava ser encaminhada para a capital, Goiânia. Ao entrar no hospital da capital, Morganna fechou os olhos e abriu-os somente após dois meses e sete dias, pois entrou em coma induzido.

Nesse tempo, enquanto sua mente descansava, o corpo travava uma batalha. 85% dele tinha sido queimado, depois, veio a infecção hospitalar e o período em que seus rins desistiram da luta. Ao acordar, seu corpo continuou precisando de atenção, com cirurgias para tratar da pele e realizar enxertos e pelo que ela considera a pior parte, a fisioterapia.

“Eu odiava a fisioterapia mas eu vejo o quanto que é necessária”. A alta hospitalar veio no dia 27 de outubro mas havia um porém: um nervo em sua perna tinha se queimado e ela não conseguia andar.

O movimento retornou após intervenções cirúrgicas, mas a fisioterapia continuou sendo o ponto fraco de Morganna. O tratamento fisioterapêutico é de extrema importância no tratamento de queimados pois ajuda a trazer os movimentos de volta para as partes que foram feridas, impedindo que os músculos e a pele atrofiem.

Ela confidencia que havia passado o dia anterior à entrevista chorando, o médico a informou da necessidade de fazer uma nova cirurgia de enxerto na mesma perna. Enfrentar, de novo, a sala de cirurgia e a retirada do enxerto provocou uma onda de tristeza em Morganna, mas isso agora não a afoga.

Além de realizar acompanhamento terapêutico, ela conta com Heitor, a quem nos apresenta durante a entrevista como “príncipe”.

Ela e o filho ainda vivem na mesma casa onde tudo aconteceu, mas nenhum deles consegue entrar no quarto que foi cenário da quase tragédia. A criança era pequena demais para entender o que ocorreu naquela data de 2015, mesmo assim, ele sabe que o brilho daquela noite não era algo bom. Heitor, hoje, ajuda a tratar das cicatrizes da mãe, auxiliando a passar os cremes e as pomadas necessárias.

“As minhas cicatrizes são marcas de vitória. Eu não vejo isso como vítima, eu sou uma sobrevivente.”

Morganna reforça que é linda! Com tudo o que passou, ela é uma pessoa de energia incrível, que não tem medo de conversar sobre o assunto e, principalmente, não tem vergonha de sua história. O que importa para ela é não desistir pois, no fim, tudo vai dar certo.

Se há 5 anos sua vida parecia sem rumo, hoje ela reconstruiu seu reino, através de sessões de terapia e várias cirurgias depois. Morganna é a rainha de sua própria história e Heitor usa a coroa de príncipe.


“A palavra vítima tem esteriótipo forte”


A vida de Tatiane Felix é agitada. Advogada, conselheira municipal de saúde, conselheira municipal de assistência, presidente do Centro de Acolhimento à Sobreviventes de Queimaduras e Feridas - Sobreviva e mãe de dois filhos.

Esse cotidiano corrido a acompanha desde quando era bebê.

Tatiane tinha dois anos quando sofreu um acidente doméstico com líquido quente. Foi um daqueles momentos em que, ao piscar, um pequeno descuido faz algo dar errado. A criança teve 50% do seu pequeno tronco queimado.

Ela foi encaminhada para o atendimento público, recebeu o tratamento de praxe e só. Por falta de recursos financeiros, a menina não pôde realizar as cirurgias reparadoras na pele ou tratar das sequelas como deveria.

Essa dificuldade para ter um atendimento completo sempre incomodou Tatiane. Ela cresceu, estudou, foi para o Rio de Janeiro em 2000 na esperança de ser tratada por Ivo Pitanguy, que era um renomado cirurgião plástico, mas retornou para Minas Gerais estando do mesmo modo como saiu.

Ainda com esperança, Tatiane ingressou na faculdade, formou-se em História e cursou uma especialização, conseguiu um bom emprego e o melhor: um plano de saúde.

Desde então, ela passou pelo centro cirúrgico 12 vezes, para fazer cirurgias reparadoras que devolveram à ela a “oportunidade de viver novamente um sonho de ser uma sobrevivente, uma mulher feliz e realizada", define.

Tatiane reforça que não admite ser vista como vítima e sim como sobrevivente e ensinou essa definição para Jenifer, Morganna e muitas outras pessoas.

“A palavra vítima tem esteriótipo forte, adere ela a quem está neste estado. Nós do Centro de Acolhimento aos Sobreviventes de Queimaduras e Feridas - Sobreviva, investimos na reabilitação e reinserção dessas pessoas que passaram por esse grande trauma na sociedade’

O Sobreviva é uma ONG que nasceu em março de 2015, fundado por Tatiane.

Após enfrentar tantos empecilhos para realizar os tratamentos que trouxeram de volta parte de sua autoestima, a agora advogada viu o serviço de atendimento público aos queimados de seu estado ser desmantelado aos poucos e não ficou parada.

Tatiane movimentou a sociedade civil, conversou com políticos de Anapólis e, assim, criou a ONG que hoje, com seus mais de 70 voluntários, presta ajuda para pessoas que vêm de todo o país em busca de atendimento para queimaduras em Goiânia e permite que elas fiquem hospedadas na casa de acolhimento da Sobreviva.

Goiás é referência nacional do tratamento de queimaduras, pois é endereço do Centro de Referência de Queimados, localizado no Hospital Estadual de Urgências da Região Noroeste de Goiânia Governador Otávio Lage de Siqueira, conhecido como Hugol, além do Hospital de Queimaduras de Anápolis.

“As pessoas, no primeiro momento, fragilizadas diante do acidente sentem-se acolhidas, respeitadas, cuidadas. Depois, a maioria tem gratidão e nos tornamos uma grande família pelo Brasil afora.”

Gratidão, essa é a palavra que une todas as histórias.

Jenifer não foi atendida pela ONG, mas se aproximou do projeto e de quem o preside através do grupo da Sobreviva no Facebook, no qual conversa com outros queimados e tenta transmitir sua gratidão pela oportunidade de viver.

Morganna expressa, em diversos momentos, o quão grata é por ter conhecido Tatiane. Foi graças aos esforços e ao trabalho da Sobreviva que ela conseguiu as cirurgias que devolveram o movimento de sua perna.

Com esse trabalho voluntário, que atua em três pilares: prevenir acidentes, com palestras informativas para crianças em escolas; abrigar pacientes em tratamento e a formação de voluntários, que aprendem como evitar e realizar os primeiros socorros aos queimados, Tatiane visa fazer com que que as pessoas não vejam a si mesmas como vítimas em suas histórias.

“Não se condicione. Somos sobreviventes, justamente para sermos exemplos! Não vítimas. Busque seu empoderamento através do estudo, emprego, tratamento, dignidade e felicidade. Esse acidente não deve te conter.”


3 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page