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O impacto da pandemia na saúde mental

Como o novo coronavírus se transformou em gatilho para pessoas ansiosas


Por Renata Nascimento e Giovana Faillace


Deitado na cama, Marcelo observava seu quarto no escuro. Imaginava seus pés tocando o chão frio, se levantando e caminhando até a escrivaninha para pegar mais um cigarro. Sabia que aquilo não era racional, mas acreditava que de alguma forma a fumaça e o calor podiam dissolver sua inquietude. O cinzeiro cheio lhe dizia que já havia fumado demais pelo dia, mas também o convidava a desafiar a própria ansiedade. Sem conseguir respirar, imaginando o vírus impregnado nas narinas, levantou e se dirigiu ao maço quase vazio. Com o isqueiro em mãos o alívio já se fazia quase instantâneo. Foi na primeira tragada e na sensação entorpecente que se seguiu que ele relembrou. Aos doze anos, Marcelo Kawai tinha uma relação diferente com o mundo ao seu redor. Distraído, sempre curioso e querendo aprender, ele perdia o brilho nos olhos sempre que precisava fazer tarefas comuns. Ao contrário do habitual, ficava imerso. Imaginava mil e uma possibilidades de como lavar as mãos. E sempre que lavava antes de dormir, para se sentir mais seguro, tinha seu próprio ritual. Após desligar a torneira, secar as mãos e arrumar o sabonete do jeito certo, ele conferia se tudo estava no lugar. Então lavava as mãos de novo. E mais uma vez. Lava, esfrega, seca, sabonete. Mais uma para garantir. No meio da noite, acordava se perguntando se tudo estava correto, e se, por algum motivo não conseguisse realizar seu passo a passo, o sono não viria. Não demorou muito para que seus pais engajados percebessem que algo não estava certo e que uma criança deveria ficar animada para viajar sem se preocupar em arrumar a mala milimetricamente. Assim, Marcelo passou o fim da sua infância e início da adolescência indo em médicos que tentavam entender o que ele não conseguia explicar. Lava, esfrega, seca, sabonete, repete. Hoje, aos vinte e dois anos, já diagnosticado com Transtorno Obsessivo Compulsivo, déficit de atenção e hiperatividade, o músico, amante do estilo clássico, e administrador por formação, ganhou um novo inimigo. Não era mais um sabonete fora do lugar, mas algo impalpável, invisível e ameaçador. Um vírus. Sem cor. Sem cheiro. Sem possibilidade de recuo. Uma pandemia mundial que mudaria todas as suas percepções sobre si mesmo. O Covid-19 foi trazido para o Brasil em fevereiro de 2020. Desde então, o número de casos começou a crescer em São Paulo, atingindo o restante do Brasil em poucas semanas. Com grande parte do mundo infectado pela doença, a OMS declarou estado de pandemia. Se sabia pouco sobre a doença, sua origem, nível de contaminação e sequelas. O que se sabia era que tratava-se de uma doença altamente letal e nenhum lugar do planeta possuía alguma perspectiva de cura ou tratamento eficiente. Os jornais bombardeavam a população de informações 24 horas por dia. A única medida eficiente era - e ainda é - o distanciamento social. Mas permanecer trancado em casa não era um opção para grande parte da população. A preocupação e o estresse intenso foi absorvido por Marcelo. Sua casa era seu maior refúgio, os estranhos nas ruas seu maior pesadelo. Em um dia de descuido, sua mochila suja em sua cama se tornou um monstro. Limpa, esfrega, álcool em gel, seca, limpa, esfrega. De novo. Todos os dias. Por semanas. "Minha namorada me achava louco, me alertava que aquilo não era normal mas eu sabia que ia pegar o covid dentro do meu quarto". Como lutar com aquilo que não vemos? Com a sensação de ansiedade aumentando, os ataques de pânico emergindo, problemas no trabalho, diversas cobranças e sem a possibilidade de curtir, Marcelo juntou forças a um antigo amigo, o cigarro. Um amigo que estava sempre lá e que nunca precisaria se distanciar. Cada tragada era intensa, Kawai buscava preencher o pulmão com a fumaça reconfortante, amenizando cada batimento cardíaco acelerado. "O que tava acostumado a fumar em uma semana eu fumava em dois dias. Fiquei muito ansioso, com muito medo também." A sensação de conforto que a nicotina trazia para ele valia os seus malefícios.



Desde que começou a fumar na adolescência, o cigarro o ajudava a perceber sua ansiedade. Com um relato diferente de muitos, para ele, a ansiedade nunca era física ou facilmente percebida. Era quando se encontrava acabando com os maços do mês em uma semana que as coisas faziam sentido. Assim, conseguia notar o motivo da sua irritabilidade, mudanças de humor e compulsões. O nervosismo, taquicardia, sensação de aperto no peito eram cada vez mais recorrentes. Como contraponto, o mesmo tabaco que o alertava da sua doença era o que conseguia acalmá-lo. O vício era mais recompensador do que a dor da realidade. Na pandemia, a internet virou gatilho. Um vídeo de anos atrás de um fumante ofegante compartilhado no Whatsapp como consequência do vírus fez com que ele não dormisse por dias com aperto no peito. O sensacionalismo machucava. Como fumante e, consequentemente, grupo de risco, ainda é difícil aceitar que o alívio de suas dores também é um risco diante dessa ameaça mundial. E não foi só Marcelo que viu sua saúde mental se desdobrar nesse momento. Além do desemprego alto, do medo da contaminação, da incerteza do amanhã e dos meses trancados dentro de casa, muitas pessoas desenvolveram estresse pós traumático, depressão e ansiedade nesse período. Conforme um levantamento com 4.693 brasileiros feito pela Área de Inteligência de Mercado do Grupo Abril, em parceria com a MindMiners, 54% dos cidadãos estão extremamente preocupados e ansiosos com a situação da Covid-19. Para Valéria Sica, psicóloga clínica há trinta anos, a pandemia aumentou a ansiedade de pessoas anteriormente diagnosticadas com esse transtorno, mas também trouxe à tona esse sentimento em quem nunca tinha experienciado isso de forma grave antes. "Os primeiros meses da quarentena foram bem tensos e intensos, as pessoas ficaram com muito sono perturbado, pesadelos, inseguranças." Beatriz Duarte, estudante de jornalismo de dezenove anos, desenvolveu o Transtorno Obsessivo Compulsivo durante a pandemia como consequência da sua ansiedade e depressão anteriormente diagnosticada. Bia passou a morar sozinha em São Paulo aos dezessete anos quando ingressou na Faculdade Cásper Líbero para cursar jornalismo. Seu sonho desde a infância era ser atriz, mas os pais advogados não permitiram que Duarte o fizesse. Ao voltar para a casa da família em Campinas para passar o período de isolamento, sua saúde mental melhorou no sentido geral, mas o novo inimigo não se deixou abater e agora ela lida com a compulsão pela organização e iniciou novos remédios para o TOC. Ansiosa desde pequena, Beatriz começou a fazer acompanhamento psicológico aos oito anos com o apoio da sua família. No entanto, foi aos dezessete, recém chegada em São Paulo, morando sozinha pela primeira vez, estudando algo que ela não queria e em um relacionamento abusivo que sua saúde mental passou a ser um problema psiquiátrico. O dia inteiro na cama. As roupas sujas. A louça para lavar. As tarefas atrasadas. O choro constante. A necessidade de sumir. Era assim que Bia se encontrava. Completamente perdida e sozinha, cada dia se tornava um peso. A vida perdia a cor, os olhos não aparentavam nada, apenas um vazio. Olhando no espelho, não reconhece o que vê. "Eu tinha me transformado numa pessoa que eu não era, completamente diferente da pessoa que saiu de Campinas. Me vi numa situação que não era a que eu sonhava estar, eu só chorava, só tinha pensamentos ruins, tendências suicidas. Aí eu vi que eu precisava de ajuda, que eu não podia ficar assim." Com uma força que não sabia de onde vinha, entre as crises no banheiro no intervalo da primeira e segunda aula, Beatriz procurou ajuda psiquiátrica e começou a tomar remédios controlados. Em consonância com a terapia, o caminho se abria novamente e era possível ter esperança e entender que a dor poderia ter fim. De acordo com Valéria, além do aumento no número de pessoas ansiosas nesse período, a percepção e cuidado com a doença também aumentaram. “A questão emocional tem tomado mais espaço nos últimos anos e aí os diagnósticos e a busca por tratamentos começa a ficar mais evidente. Mas sim, as pessoas tem ficado muito ansiosas, e isso tem aparecido bastante.” Mesmo assim, foi por meio da crise global de 2020 que Beatriz Duarte entendeu que a saúde mental não é uma constante. Rodeada pelo amor de seus familiares nesse período difícil, a estudante abraçou o conforto da casa dos pais, o carinho dos entes queridos e uma nova rotina de trabalho e atividades. Tudo parecia se encaminhar, mas o surgimento de novas manias de limpeza, crises organizacionais, a necessidade constante de controlar tudo e todos ao seu redor foi facilmente identificada como um problema subjacente da sua ansiedade. A preocupação e o pânico passaram a consumir boa parte dos seus momentos em família. Mais do que suas próprias necessidades, Beatriz se preocupava e entrava em crise com as saídas - controladas - de seus pais e avós. A tensão deixava seus músculos retorcidos e sua cabeça não parava de pensar nos piores cenários. Os questionamentos eram constantes. Morte. Vida. Dor. Amor. Dor. Medo. Dor. O medo de perder os parentes, de se desconectar dos amigos, de ser deixada de lado e do abandono como um todo foram novas pressões sufocantes que surgiram nesse período.


Para a psicóloga, vivemos em uma sociedade ansiosa e que causa ansiedade. “Nenhuma doença psiquiátrica é causada por um fator só, então entendemos que a ansiedade pode vir de uma forma hereditária, genética, ambiental, de estresse, de como a pessoa encara a vida, ou de como ela organiza tudo isso. Precisamos entender que se a ansiedade está em aumento no planeta, as pessoas estão apresentando mais ansiedade, a gente precisa tentar entender que mundo é esse que estamos vivendo.

A gente está em uma sociedade ansiosa. Então o que acontece nessa sociedade que as pessoas ao viverem e se relacionarem se tornam ansiosas e evitadoras? Porque a ansiedade faz com que as pessoas evitem algumas situações quando é excessiva.”


Agora, quase oito meses depois do início do isolamento, tanto Marcelo quanto Beatriz tentam entender e lidar com suas perspectivas de vida, seus medos, anseios e apertos nesse - já não tão novo - cenário caótico. Assim, em meio à crise, ambos lutam pela própria saúde mental, desafiando a sociedade doente em que vivem.

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